Passaram apenas quatro anos desde a publicação do novo Missal com o qual Paulo VI surpreendeu todo o mundo católico ao promulgar, a 6 de Abril de 1969, o Novus Ordo Missæ. A revisão de 1965 não tocou na liturgia tradicional. Em conformidade com o disposto no artigo 50 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, a principal preocupação era suprimir alguns acréscimos posteriores ao Rito da Missa. A publicação da Ordo Missæ de 1969 criou, no entanto, um novo rito. Dito de outro modo: a liturgia tradicional não havia passado por uma simples revisão, como pedia o Concílio. Muito pelo contrário: foi revogada e, alguns anos depois, o rito tradicional foi, de facto, proibido. Por isso, perguntamo-nos: ajustam-se umas reformas tão radicais à tradição da Igreja?
(…) Poder-se-ia argumentar que a autoridade do Papa para introduzir um novo rito, isto é, para fazê-lo prescindindo da decisão de um concílio, pode derivar da plena e suprema potestade que tem sobre a Igreja, segundo diz o Concílio Vaticano I; quer dizer, autoridade em questões quæ ad disciplinam et regimen ecclesiæ per totum orbem diffusse pertinent (do regime e disciplina da Igreja difundida por todo o mundo) (Denzinger 1831). Ora bem, a palavra disciplina não se aplica, de forma alguma, ao rito da Missa e menos ainda se tivermos em conta que os pontífices assinalaram em repetidas ocasiões que o rito se baseia na tradição apostólica. Só por isso, o rito fica fora do que diz respeito à disciplina e ao governo da Igreja.
Poderíamos acrescentar que não existe um único documento, nem sequer o Código de Direito Canónico, que afirme concretamente que o Papa, como pastor supremo da Igreja, possua autoridade para revogar o rito litúrgico tradicional. Mais ainda: em lugar nenhum é dito que o Sumo Pontífice tenha poder para alterar sequer uma tradição litúrgica local. Não mencionar a existência de tal poder acrescenta um peso considerável ao nosso argumento. A plena e suprema potestade do Papa tem limites claramente definidos. Por exemplo, é inegável que em questões dogmáticas deve ater-se à Tradição da Igreja universal. Ou seja, como aponta São Vicente de Lérins, o que sempre se acreditou (quod semper, quod ubique, quod ab omnibus).
Efectivamente, alguns autores afirmam com bastante clareza que revogar o rito tradicional está, sem dúvida, fora da competência do Papa. O eminente teólogo Suárez (falecido em 1617), citando autores anteriores como Cayetano (falecido em 1534), pensa que o papa que o fizesse seria cismático, já que «não estaria em plena comunhão com a Igreja, como é seu dever, se, por exemplo, excomungasse toda a Igreja ou substituísse os ritos que a Igreja herdou da tradição apostólica» (Et hoc secundo modo posset Papa esse schismaticus, si nollet tenere cum toto Ecclesiæ corpore unionem et coniunctionem quam debet, ut si tenat et totem Ecclesiam excommunicare, aut si vellel omnes Ecclesiasticas cæremonias apostolica traditione firmatas evertere).
Ao estudar a questão da autoridade ilimitada do Papa e de que modo lhe daria poder para alterar um rito litúrgico previamente estabelecido, é possível que, se o argumento de Suarez não tem suficiente peso, este outro tem: o facto incontestável de que, antes de Paulo VI, nenhum pontífice fez mudanças fundamentais nos ritos como estamos a testemunhar agora.
P. Klaus Gamber
A Reforma da Liturgia Romana
Fonte: DIES IRAE