Discurso proferido na cerimónia do Porto junto ao memorial dedicado aos Combatentes da Guerra do Ultramar – 10 de Junho de 2021
Alguns dos que aqui se encontram estariam normalmente hoje em Lisboa, frente ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, junto ao Forte de Belém, na tradicional cerimónia que ali tem lugar em cada 10 de Junho, para honrar a memória desses combatentes e muito especialmente dos mortos em combate, cujos nomes se encontram gravados nas lápides do Memorial aos Caídos pela Pátria, espalhadas pela muralha do Forte e que, naquela data, são particularmente venerados pelos participantes: familiares, ex-combatentes de diversas origens e raças e todos os que, não o tendo sido, espontaneamente se associam à celebração.
No entanto, um facto relevante ocorreu nesta cidade desde a última cerimónia, naquele dia, em 2019: consumou-se um desejo, há muito alimentado por um grupo de portuenses, composto por militares, ex-combatentes e ex-militares que, a partir de 2008, tomou a iniciativa de promover, aqui, a edificação de um Memorial aos Combatentes do Porto na Guerra do Ultramar, como aqueles que vinham a ser implantados, em quase todos os concelhos do País, mas que o Porto era a desonrosa excepção que ainda o não tinha.
Depois de vários planos elaborados ao longo dos anos para construção de um Monumento, noutros locais da cidade, fruto da referida iniciativa e do decisivo apoio da Câmara Municipal do Porto — e, nesse sentido, não podemos deixar de destacar o corajoso empenho posto na consumação do projecto, pelo seu Presidente, Dr. Rui Moreira — acabou por ser possível que, desde o passado mês de Abril, estivesse edificado e pronto este Memorial, que, sendo simples, honra todos os que desta cidade combateram na Guerra do Ultramar e, particularmente, a memória dos que nela caíram em combate, cujos nomes também aqui ficam perpetuados em quatro das cinco lápides que o compõem.
Numa data em que a Nação honra os seus heróis, no primeiro 10 de Junho após a edificação deste Memorial, não podíamos, assim, deixar de nos apresentar aqui para invocar e exaltar o seu sacrifício e a memória de todos os portuenses que combateram e morreram nos três palcos da guerra ultramarina, na defesa do que há séculos eram territórios portugueses, fosse sob o Antigo Regime, fosse sob a Monarquia Constitucional, fosse sob a República, fosse, como então, sob o Estado Novo.
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Enquanto os mais de 300 memoriais que existem pelo País, dedicados aos Combatentes do Ultramar, se conseguiram erguer de forma mais ou menos pacífica, o Monumento do Porto nasceu sob a encarniçada oposição das forças revolucionárias e anti-patrióticas. Até o pároco do local se recusou a ir ali rezar uma simples oração pelos defuntos, desprezando mesmo os que eram da sua paróquia!
Mas o nosso comprometimento com este Memorial, que promovemos e cujo projecto acarinhamos, não se pode esgotar com esta singela manifestação e a sua próxima inauguração.
É que, se a vida e aceitação dos mais de 300 memoriais que o País edificou e dedicou aos Combatentes do Ultramar se mostrou mais ou menos pacífica, este nasceu já sob a ameaça das forças da contra-cultura, viradas para a valorização negativa da nossa história e para o desprezo dos que morreram pela Pátria e que cada vez mais se foca nas suas vitimas e nos que morreram, não por ela, mas por causa dela.
No caso, chegou-se mesmo a propor que este Memorial fosse dedicado às «vítimas da guerra colonial» e, particularmente, aos «massacres perpetrados pelos portugueses». E, para cúmulo, um pároco, repito um pároco, talvez inflamado por essas propostas, recusou-se a rezar hoje connosco uma simples oração por todos aqueles que aqui são lembrados, porque, neste monumento, estava representada apenas uma parte – a nossa, a dos portugueses, portuenses e mesmo os da sua paróquia – que combateu e morreu para defender o que então era a Nação – e não a outra parte – a dos que nos combateram para pôr cobro à presença dela nos territórios africanos e que, além do mais, nada tinham a ver com esta cidade.
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Depois do 25 de Novembro de 1975, iniciou-se uma época de uma certa reconciliação com o passado, em que, ao lado dos símbolos e comemorações ligadas à revolução, puderam conviver as memórias e celebrações das Descobertas e da consequente expansão portuguesa e, para o que agora nos interessa, as dos combatentes da Guerra do Ultramar. Uma época em que foi possível dedicar a estes combatentes centenas de memoriais espalhados pelo Pais e se reconheceu que combateram e caíram «pela Pátria», na defesa do que então eram as suas parcelas ultramarinas.
Sente-se, no entanto, a aproximação de um tempo em que o descolonialismo e o racialismo militante e sectário, explorando as alterações demográficas geradas por uma cada vez maior imigração, querem substituí-la por uma profunda clivagem que impeça quaisquer exteriorizações daquele espírito no espaço público, como na prática – todos sabem – já impediu o Museu dos Descobrimentos.
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«O túmulo dos heróis é o coração dos vivos», disse um dia André Malraux, no momento de uma oração fúnebre a Joana d’Arc.
Edificado que está este Memorial, a nossa missão, a missão de todos nós, está contudo longe de ser cumprida.
Ele terá ainda de ser defendido, protegido, guardado e vivido, para que os nossos heróis não fiquem soterrados no esquecimento ou mesmo nos destroços da sua demolição pelos novos iconoclastas. Para que esses heróis continuem no nosso coração, no coração dos vivos, para que não morram, por uma segunda vez e possamos continuar a ler, na sua lápide principal e a dizer com Camões: «em quem poder não teve a morte».
Luís Cabral de Noronha e Meneses
Porto, 10 de Junho de 2021
NR: O Monumento do Porto dedicado aos Combatentes do Ultramar foi providencialmente erguido no parque do Lordelo do Ouro, ao lado da capela do Senhor e Senhora da Ajuda, onde iam rezar os navegadores portugueses ao partir para as suas missões e ao regressar delas. Pugnaram incansavelmente pela sua construção os falecidos Coronel António Feijó, D. Miguel de Lencastre e Dr. Miguel Côrte-Real, cujos nomes também nele ficaram inscritos para a posteridade.
A imagem do Senhor da Ajuda, na capela, foi para aqui trazida da Inglaterra, no século XVI, por católicos daquele país que assim a salvaram da destruição certa à qual queriam condená-la os protestantes anglicanos.