A primeira herança da Antiguidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: o cidadão não tinha um filho, tomava-o. Caso recusasse a criança – e o facto era bastante comum – ela era enjeitada. E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte.
A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana.
Os germanos não praticavam o infanticídio. As próprias mães amamentavam os seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social.
Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Até ao final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas e as ricas enjeitadas – por causa de disputas de herança – ficando entregues à própria sorte.
Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do Cristianismo, que rompeu com essas duas tradições.
Cristo disse: «Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é maior no Reino dos Céus». (Mt 18, 1-4).
No conceito medieval, a família compunha-se de muitas gerações unidas por uma mesma herança espiritual e material
A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança. No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja.
Em sua História dos Francos, Gregório de Tours narra o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), sobre a morte de crianças:
«Essa epidemia que começou no mês de Agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou a sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, dando-lhes alimento com um cuidado delicado […]
«O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei:
«A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém.
«Nós guardámos riqueza sem ter a quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! As nossas adegas não abundam em vinho? Os nossos celeiros não estão repletos de trigo? Os nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha!
«Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que o nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.» (Gregório de Tours, Historiae, V, 34)
Ricardo da Costa
(Professor Adjunto de História Medieval da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)