Passou a ser recorrente, entre nós, atacar a figura do nosso Rei D. Sebastião – nome único entre todos os nossos Reis e também no mundo – que de “Desejado” por todos, como ficou para a História, passou a ser considerado por muitos como o símbolo do erro e da leviandade.
Tudo porque arriscou uma partida difícil e perdeu uma batalha que quase esteve ganha. Acaso a tivesse ganho não seria hoje um herói?
Creio que aquela imagem começou a ser construída no século XIX, pela historiografia emergente da Convenção de Évora-Monte, quase toda ela liberal e maçónica, e que se prolongou pela 1ª República, da qual também saiu ferido o infeliz rei D. João VI, cuja figura está a ser lenta e justamente recuperada.
Não nos fica bem tratar deste modo o jovem Rei-menino, que parece, afinal, ter morrido velho… Em primeiro lugar porque a jornada de África, sendo discutível, não era desprovida de nexo estratégico. Não acreditamos que se tratasse de ocupar todo o Marrocos – para o que, sozinhos, nunca disporíamos de forças suficientes – mas sim jogar em apoios que permitissem deter o Império Otomano em rápida expansão nos Balcãs e no Norte de África, onde já tinham chegado a áreas argelinas. Recorde-se que os Turcos só foram parados às portas de Viena em 1529 e, mais tarde, em 1683.
Lembro ainda que a batalha de Lepanto, que quebrou a expansão naval turca, no Mediterrâneo, se dera, em 1571. O perigo não tinha findado, porém, recordando-se a acção dos Cavaleiros do Santo Sepulcro de Jerusalém, a partir da ilha de Malta (e a importância da ajuda nacional nesse âmbito), e a decisiva contribuição da esquadra portuguesa na vitória do Cabo Matapam, contra os Turcos, em 1707, 130 anos depois de Alcácer Quibir…
Acresce a tudo isto o constante perigo que representava para a navegação cristã (e para as populações do litoral) a pirataria Berbere e também a “concorrência”espanhola, que cada vez intervinha mais no litoral norte africano, desde Carlos V, como são exemplos os ataques a Tunis e Argel, onde também participaram fortes esquadras portuguesas.
No Reino também se assistiu a uma mudança de política, relativamente à ideia de abandono de praças em Marrocos, posta em prática no reinado de D. João III, sobretudo após as Cortes de 1562 e da extraordinária defesa ao formidável cerco que os Mouros puseram a Mazagão, nesse mesmo ano.
A situação política em Marrocos era, outrossim, favorável: havia guerra civil e um dos principais contentores aceitou fazer uma aliança com Portugal.
É certo que o monarca português cometeu erros, sendo o maior de todos, o de se colocar à testa do Exército sem ter assegurado descendência – embora tal se devesse, em muito, à pressão dos acontecimentos; não avaliou bem as intenções do seu tio Filipe II, de Espanha – que o traiu – e, durante a batalha foi mais um combatente voluntarioso em detrimento da acção de comando na direcção da contenda.
Mesmo a crítica de se ter afastado da costa perdendo assim a protecção da frota não colhe, já que o ataque a Larache, um dos principais objectivos da expedição, era muito difícil de fazer por mar, para o que se contava com os 50 navios e os 5000 homens prometidos por Filipe II, e que nunca vieram. Já o “timing” da expedição, no pino do verão marroquino, é menos sustentável, se bem que decorresse dos atrasos sucessivos a que a prontidão do Exército foi sujeita. Houve também dificuldades de recrutamento de tropas, sobretudo no Norte de Portugal, o que obrigou ao recurso a mercenários alemães, italianos e espanhóis o que tornou o Exército algo heterogéneo. A carriagem era ainda muito pesada tornando difíceis as deslocações.
Sem embargo, Sebastião não nos desmereceu: começou por preparar a campanha com antecedência, para o que reformou toda a legislação militar, incluindo a primeira concepção moderna de serviço militar obrigatório. Depois, combateu bem e com denodo. Deu o exemplo, e pagou com a vida ou com o desterro – e tudo indica que foi esta última hipótese que ocorreu – a sua audácia e crenças. Dele disse o grande Mouzinho, na sua esplêndida carta ao Príncipe D. Luís Filipe: “…mas a morte de valente, expiatória e heróica, redime os maiores erros. Bem merece ele o nome de soldado…”
O desfecho da batalha pode não redimir totalmente a figura do jovem Rei, mas salvou para sempre a sua imagem. De tal modo que se entranhou no imaginário nacional, um peculiaríssimo estado de alma – à revelia de toda a racionalidade – e que só os portugueses entendem: o “sebastianismo”, essa saudade das glórias passadas, misturado com a esperança da redenção do porvir.
Deve ainda ter-se em conta que não foi por D. Sebastião ter sido derrotado em Alcácer Quibir, que Filipe II se apoderou da coroa portuguesa – a nossa Marinha, por ex., ficou intacta: foi pelo caquectismo e pusilanimidade do velho Cardeal D. Henrique, e porque a maioria do alto clero e da alta nobreza se deixou seduzir e corromper pelos ideais iberistas e pela prata de Sevilha! Uma lição de que nos deveríamos lembrar hoje, todos os dias…
Em síntese, apesar da sua pouca idade em Alcácer-Quibir (24 anos) D. Sebastião não nos deixou ficar mal, não fugiu, não desertou do combate, não traiu. Deu o exemplo, pôs-se à frente das tropas, combateu com bravura, não desmereceu dos seus maiores, não envergonhou a nobreza, o clero e o povo. Sebastião agiu de boa mente e com boas intenções.
Não era um “louco”ou um doente com deformações, como quiseram fazer crer. O seu reinado tinha sido um bom reinado: ocorreu um número elevado de vitórias militares, em três continentes; estabeleceram-se muitas medidas para o saneamento da economia e finanças e até da moral e dos costumes, e o próprio Rei se interessou pessoalmente pela administração da Justiça.
Ao contrário do que também quiseram fazer crer, o jovem rei não era incapaz de conceber e não se opôs a casar-se. Opôs-se sim, a casar com quem lhe destinavam e nos moldes em que o propunham. Neste âmbito é necessário recordar toda a má política seguida por seu tio, o sempre presente Filipe II.
O “Desejado” passou, desde o seu desaparecimento, a representar a esperança da redenção da Pátria, de tal modo que o povo se recusou sempre a acreditar, contra tudo e contra todos, na sua morte.
A sua figura foi um pilar fundamental da resistência à usurpação filipina e inspiradora da Restauração da Independência; foi um sustentáculo da Fé e da coesão, foi a luz que nunca se extinguiu no fim da esperança. “Da Lusitana antiga liberdade…” no dizer de Camões.
Configurou o mito da Fénix renascida, agregou vontades e deu um sentido para o futuro; ao mesmo tempo que ajudava a suportar os sacrifícios e as humilhações do longo calvário de 60 anos em que estivemos sujeitos a Madrid.
D. Sebastião nunca morreu entre nós, esteve sempre presente na mente do povo e dos grandes portugueses, nas artes e na literatura. É um ícone do nosso imaginário!
De facto, a acreditar no que D. Sebastião representa, é conseguir ultrapassar-nos a nós próprios.
O elmo de combate, em boa hora recuperado, que hoje está entre nós, e que reúne muitos indícios que podem levar a concluir, sem rebuço, que é aquele que o nosso Rei usou na malograda batalha – e disso é mister fazer prova junto da comunidade académica e cientifica – é o que nos resta dele, é um símbolo dele, é uma imagem que podemos recriar dele.
Hoje D. Sebastião, o seu espírito e o que ele representa, é-nos mais necessário do que nunca. Regressados às fronteiras do século XIII, se bem que enriquecidos com os Arquipélagos Atlânticos, poderíamos manter-nos uma pequena potência mas, em vez disso, deixámo-nos escorregar, por via de lideranças incompetentes e antipatrióticas – que nós temos tolerado – para um quase estado exíguo, que vive desmoralizado e de mão estendida.
E não temos mais retaguarda estratégica…
[…]
Creio termos que regressar à matriz nacional e a acreditar no velho espírito da casa lusitana. Em síntese, reaportuguesar Portugal!
Para isso nada melhor para nos inspirar do que a figura do Rei-menino que quis a glória da terra que lhe deu o berço. O seu elmo de batalha aí está a significar a sua intemporalidade e transcendência. Ele nos fará correr mais rápido o sangue nas veias, de modo a que nos disponhamos a enfrentar quaisquer perigos.
Com ele se levantará a altaneira “raça” portuguesa e não haverá Adamastor que nos detenha.
Uma nota final:
D. Sebastião está, pois, vivo entre nós; o que ele representa está vivo, viva então em nós o “Desejado”!
E se os seus restos mortais foram inumados em Limoges, como estudos recentes parecem atestar, e existindo forte possibilidade de se conhecer a urna em que estiveram depositados, então só nos resta pugnar, junto do governo francês, para que a dita urna e toda a memoralistica que se possa vir a identificar, regresse a Portugal.
Devemos, então, enviar uma escolta de cadetes das Academias Militares, para o acto de tomada de posse, enviar tudo para o porto mais próximo e embarcar num navio da esquadra portuguesa, que faria o transporte para Portugal. A Cruz de Cristo, das asas dos caças da Força Aérea, será protecção segura após entrada em águas nacionais. O desembarque seria no Restelo, após salvar a artilharia; seguir-se-ia guarda de honra e “Te Deum” nos Jerónimos e festa em todo o país.
D. Sebastião é um dos nossos maiores, deve regressar à Pátria. É um dever e uma dívida de todos nós.
Viva o Desejado!
Arraial, Arraial, por Portugal
João J. Brandão Ferreira
Ten.Coronel Piloto-Aviador (Ref.), 7/8/2001